sábado, 31 de maio de 2008

As raposas no galinheiro

[Publicado de maneira mais sintética em Política Operária, nº 98, Janeiro-Fevereiro de 2005]


O PT brasileiro vinte anos depois


(Nestas notas apresento de maneira resumida os pontos principais da minha intervenção no debate «A Esquerda e o Parlamento».)

Tanto o Partido dos Trabalhadores (PT) como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) nasceram a partir de dois campos opostos: os movimentos de base e as cúpulas. No caso do PT a movimentação de base consistia sobretudo nas organizações de bairro, que em alguns casos assumiram formas muito desenvolvidas e complexas, com escolas, creches, etc. organizadas de maneira cooperativa. No caso da CUT as organizações de base consistiam nas comissões de trabalhadores e nas oposições operárias, que entravam em confronto com o sistema sindical herdado do regime de Getúlio Vargas e adoptado pela ditadura militar. Contra a orientação que pretendia reestruturar a vida política e sindical da esquerda brasileira a partir da base apresentava-se a orientação que conferia toda a iniciativa às cúpulas e procurava adapatar o PT e a CUT aos moldes tradicionais. Como sempre acontece, havia ainda numerosos militantes a propor uma terceira alternativa, na ilusão de conjugar as outras duas. A popularidade assegurada então no Brasil aos escritos de Gramsci inseria-se nesta tentativa votada ao fracasso.
Os subsídios regularmente recebidos da social-democracia alemã e do sindicalismo italiano contribuíram para reforçar as cúpulas em detrimento das bases, e a breve trecho o PT e a CUT começaram a dispor de consideráveis infra-estruturas dependentes directamente da direcção nacional do partido e das direcções federal e estaduais da central sindical. Mas a liquidação das iniciativas de base e a reestruturação do movimento político e sindical em moldes centralistas e autoritários deveu-se acima de tudo à sua evolução interna.
O PT substituiu a actividade nas comunidades de bairro pela conquista eleitoral de prefeituras (câmaras municipais). É neste contexto que se deve entender o Orçamento Participativo, que apresenta ao sufrágio da população, organizada por bairros, aquela pequena parte do orçamento municipal que não está vinculada a despesas fixas. É decerto possível aproveitar as reuniões e debates do Orçamento Participativo para estimular a actividade nos bairros, mas na grande maioria dos casos o processo tem servido sobretudo para consolidar a relação dos prefeitos (presidentes das câmaras) com as clientelas locais.
Quanto à CUT, a estrutura assente nas oposições sindicais e nas comissões de fábrica foi abandonada em benefício de um sindicalismo autoritário e fortemente burocratizado, a tal ponto que poucos anos após a fundação da Central já os seus dirigentes se queixavam da falta de representação nas empresas. Mas é impossível erguer uma organização que recuse a iniciativa própria das bases e pretender, ao mesmo tempo, que as bases tomem a iniciativa de apoiar essa organização.
A experiência brasileira revela – uma vez mais – que a questão principal não consiste na participação no parlamento mas na estrutura interna das organizações, no tipo do seu relacionamento com a classe trabalhadora e com os movimentos de contestação. Ao liquidarem as iniciativas de base o PT e a CUT deixaram de se apresentar como organizações em ruptura com o capitalismo e passaram a colaborar na remodelação interna do capitalismo.
Neste quadro há uma excepção, o Movimento dos Sem Terra (MST). De início os sem terra contavam com muito pouco apoio, e foram eles que, através da sua própria luta, se impuseram à solidariedade urbana e sindical, acabando por se converter no ponto de convergência de todos os movimentos de contestação. Não devemos ignorar a existência no interior do MST de uma grande ambiguidade, pois, por um lado, embora ele se caracterize por um acentuado radicalismo na base e siga uma táctica aguerrida relativamente aos senhores da terra, a direcção segue uma táctica muitíssimo conciliatória nas suas relações com os sucessivos governos. Todavia, o principal é que o MST não se limita a reivindicar mas constrói relações sociais alternativas, onde a solidariedade constitui a regra, e é isto que lhe dá um carácter anticapitalista. Nos últimos anos o MST tem procurado estimular um movimento equivalente nas cidades, que organize os sem tecto e os leve à ocupação de terrenos baldios e de moradias, mas por enquanto com escassos resultados. As dificuldades são muitas, é mais difícil construir uma solidariedade duradoura entre os sem tecto do que entre os sem terra e a repressão encontra-se facilitada nas cidades.
Neste panorama a única coisa que singulariza o governo Lula é o facto de consagrar os resultados da mobilidade social ascendente. Ao longo de vinte anos o PT e a CUT serviram para retirar sistematicamente ao movimento dos trabalhadores a maior parte dos elementos mais combativos e dos activistas de esquerda, para os inserir em estruturas directivas fortemente burocratizadas e para os promover ao longo dos sucessivos escalões do poder político. E assim um movimento surgido contra o capitalismo encontra-se hoje a gerir eficazmente o capitalismo.
Um governo não pode tomar medidas radicais se não tiver um movimento de massas a impulsioná-lo. O parlamentarismo leva obrigatoriamente ao governamentalismo? A evolução neste caso não se deveu ao parlamentarismo mas ao triunfo da cúpula sobre os movimentos de base durante os primeiros anos de vida do PT e da CUT.
E termino com a questão que me parece fundamental: o que deve ser uma actuação anticapitalista em épocas de refluxo das lutas dos trabalhadores? Mas para esta questão não existe uma resposta teórica já elaborada. A resposta é prática, e é diferente de cada vez.

João Bernardo

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